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O Inconsciente Estético: uma introdução ao pensamento de Jacques Rancière

Cássio Menin

Cássio Menin

Educador musical e pesquisador. Mestrando em Estudos de Linguagens pela UTFPR

O livro “O Inconsciente Estético” é uma introdução ao pensamento de um dos mais importantes filósofos da atualidade, o francês Jacques Rancière. O autor não se propõe a entender como os conceitos freudianos se aplicam à interpretação de obras literárias e artísticas. Ao contrário, ele procura demonstrar como as formulações de Freud estão em estreita relação com os movimentos da arte ocorridos sobretudo a partir do romantismo, explorando as tensões entre a lógica do inconsciente freudiano e uma outra lógica, a do inconsciente estético.

Rancière sugere que a teoria psicanalítica do inconsciente é possível de ser formulada devido à existência prévia de uma compreensão de uma modalidade inconsciente de pensamento fora do contexto clínico. Ele identifica as obras de arte e a literatura como o domínio onde essa modalidade inconsciente de pensamento é especialmente manifestada ou realizada. 

O autor expande a definição de estética para além do estudo tradicional da arte. Para Rancière, a estética refere-se a um modo de pensamento que se dedica a entender a arte como uma forma de pensamento. Ele vê a estética como um regime histórico específico que percebe as obras de arte como instâncias de pensamento.

“Para mim, estética não designa a ciência ou a disciplina que se ocupa da arte. Estética designa um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento. De modo mais fundamental, trata-se de um regime histórico específico de pensamento da arte, de uma ideia do pensamento segundo a qual as coisas da arte são coisas de pensamento.” (p. 11 e 12)

Imagem gerada pela IA DALL-E a partir da citação acima

Em seguida, o autor discute uma redefinição paradoxal do “conhecimento confuso” na estética, onde a arte, anteriormente vista como um domínio de pensamento menos rigoroso em comparação com outras formas de conhecimento, agora é vista como uma forma de pensamento que dialoga com o não-pensamento. “Isto é, ela faz do “conhecimento confuso” não mais um conhecimento menor, mas propriamente um pensamento daquilo que não pensa.” (p. 13). Essa redefinição desafia as distinções tradicionais entre diferentes formas de conhecimento e pensamento.

Segundo o Rancière, o pensamento freudiano se torna possível através da transição do domínio das artes do reino da poética para o da estética. Essa mudança parece refletir uma reconfiguração na maneira como as artes são compreendidas e interpretadas, uma “afirmação de universalidade” que integra uma tendência geral do psiquismo humano, um material ficcional específico e um esquema dramático exemplar. Ele parece sugerir uma relação intrínseca entre o psiquismo humano e a maneira como a arte e a literatura são criadas e interpretadas (p.15). 

O defeito de um tema

No capítulo, Rancière explora a psicanálise sofocliana e a representação clássica, focando na narrativa de Édipo. Ele critica a universalidade da psicanálise edipiana, destacando uma relação problemática entre o que é visto, dito e ouvido, e sugere que a narrativa mostra excessivamente ao espectador. 

Rancière também descreve a ordem da representação, discutindo como a palavra, no contexto clássico, serve para fazer ver, mas restringe a potência do visível. Ele contrasta o drama clássico, baseado em ações de personagens com conhecimento parcial, com a busca obsessiva por conhecimento na narrativa edipiana, destacando a tensão entre a busca por conhecimento e suas consequências catastróficas. O capítulo sugere uma crítica profunda às estruturas de representação e interpretação na tradição clássica.

“A ordem da representação significa essencialmente duas coisas. Em primeiro lugar, uma determinada ordem das relações entre o dizível e o visível. Nessa ordem, a palavra tem como essência o fazer ver. Mas ela o faz segundo o regime de uma dupla retenção. Por um lado, a função de manifestação visível retém o poder da palavra. Esta manifesta sentimentos e vontades, em vez de falar por si mesma, como a palavra de Tirésias – assim como a de Ésquilo ou a de Sófocles -, sob a forma de oráculo ou de enigma. Por outro lado, ela retém a potência do próprio visível. A palavra institui uma determinada visibilidade. Manifesta o que está escondido nas almas, conta e descreve o que está longe dos olhos. Mas, assim, retém sob seu comando o visível que ela manifesta, impedindo-o de mostrar por si mesmo, de mostrar o que dispensa palavras, o horror dos olhos furados.” (p. 22). 

“…em segundo lugar, é uma determinada ordem das relações entre o saber e a ação. O drama, diz Aristóteles, é ordenação de ações. Na base do drama, há personagens perseguindo certos objetivos, em condições de ignorância parcial, cujo desenlace se dará no decurso da ação. Dessa forma, exclui-se precisamente o fundamental da performance edipiana, o pathos do saber: a obstinação maníaca por saber o que é melhor não saber, o furor que impede de ouvir, a recusa de reconhecer a verdade na forma em que ela se apresenta, a catástrofe do saber insuportável, do saber que obriga a subtrair-se ao mundo do visível.” (p. 22-23). 

Imagem gerada pela IA DALL-E a partir da citação acima

A revolução estética

No Capítulo 2, Rancière explora a ideia do regime representativo onde o pensamento é visto como uma ação imposta a uma matéria passiva. Através da figura de Édipo, ele destaca uma selvageria existencial do pensamento, onde o saber é visto mais como um afeto ou uma enfermidade do que um ato subjetivo de apreensão. Ele argumenta que a psicanálise surge no cruzamento entre filosofia e medicina, colocando o pensamento e a doença em diálogo recíproco.

Rancière discorre sobre a dualidade de Édipo que sabe e não sabe, age e padece, apontando como a revolução estética redefine a arte através dessa identidade de contrários. A arte, segundo ele, desafia as normas do regime representativo, manifestando uma potência absoluta do fazer, enquanto ao mesmo tempo exibe uma passividade incondicionada.

A discussão se aprofunda com a referência a Vico, que propõe uma nova hermenêutica que relaciona a imagem às condições de sua produção, ao invés de um sentido oculto. Rancière descreve a refutação de Vico à imagem tradicional do poeta como inventor, argumentando que Homero, por exemplo, não inventou fábulas, caracteres ou ritmos, mas era testemunha de um estado da linguagem e pensamento em que a palavra era idêntica ao canto.

“Assim, os quatro privilégios do poeta-inventor são transformados em propriedades de sua linguagem, de uma linguagem que é sua na medida em que não lhe pertence, em que não se constitui num instrumento à sua disposição, mas no testemunho de um estado de infância da linguagem, do pensamento e da humanidade.” (p. 30). 

As duas formas da palavra muda 

No Capítulo 3, Rancière explora a ideia de um “pensamento que não pensa” e um “não-pensamento” que habita e potencializa o pensamento, discutindo a intrínseca relação entre estes e a linguagem. Ele apresenta a escrita não apenas como materialidade do signo, mas como um estatuto específico da palavra, referindo-se a ela como “logos mudo” em Platão, uma palavra que continua a falar sem poder dar conta do que profere.

Rancière avança para a ideia da palavra literária como uma “palavra do sintoma”, onde tudo é visto como um vestígio ou fóssil que carrega consigo uma história. Ele compara o grande poeta dos novos tempos a um geólogo ou naturalista, que reconstitui histórias a partir de ossos e impressões fossilizadas, enfatizando a potência poética e significante dos detalhes aparentemente insignificantes do mundo.

Ele também discute a potência inerente da linguagem em cada aspecto da obra e como a hermenêutica, a interpretação dos textos, requer uma mitologização do banal para revelar seus segredos. A literatura é vista como um meio que transita do claro ao obscuro, do logos ao pathos, refletindo a pura dor da existência e a reprodução do sem-sentido da vida.

 “O inconsciente estético, consubstancial ao regime estético da arte, se manifesta na polaridade dessa dupla cena da palavra muda: de um lado, a palavra escrita nos corpos, que deve ser restituída à sua significação linguageira por um trabalho de decifração e de reescrita; do outro, a palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo, mesmo que essa voz anônima e esse corpo fantasmagórico arrastem o sujeito humano para o caminho da grande renúncia, para o nada da vontade cuja sombra schopenhaueriana pesa com toda força sobre essa literatura do inconsciente.” (p. 41)

Imagem gerada pela IA DALL-E a partir da citação acima

De um inconsciente ao outro e As correções de Freud

Nos capítulos 4 e 5, Rancière traça a relação entre a literatura e o inconsciente na obra de Freud, bem como a interação entre arte, poesia e racionalidade científica.

O autor destaca que a literatura utilizada por Freud tem sua própria concepção de inconsciente e pathos do pensamento, argumentando que o domínio do “pensamento que não pensa” não é um reino inexplorado, mas um território já ocupado, onde diferentes concepções de inconsciente competem e conflitam. Ele explora a “história da arte” como a história dos regimes de pensamento da arte, delineando como esses regimes conectam práticas artísticas a modos de visibilidade e pensabilidade, refletindo ideias sobre o próprio pensamento. 

Rancière enfatiza que a abordagem freudiana da arte não busca desmistificar a poesia e a arte, mas sim, valoriza a arte e a poesia como testemunhas da racionalidade profunda da “fantasia”, integrando-as à racionalidade científica. No entanto, ele observa que Freud vê poetas e romancistas como apenas meio-aliados, por não terem dado atenção suficiente à racionalidade dos sonhos e fantasias.

Em seguida, o autor foca na tentativa de Freud de promover uma vocação hermenêutica e elucidativa da arte, contraposta à entropia niilista inerente à configuração estética da arte, reiterando a análise do regime representativo da arte, explorando a ideia do poema como uma disposição ordenada de ações, onde o saber é mantido sob o domínio da história e o visível sob o domínio da palavra, refletindo uma relação de contenção mútua entre o visível e o dizível.

Dos diversos usos do detalhe

No Capítulo 6, Rancière discute a abordagem de Freud ao inconsciente estético, evidenciando uma escolha deliberada de Freud ao privilegiar a forma da “palavra muda” que atua como sintoma ou vestígio de uma história, em contrapartida à voz anônima da vida inconsciente e insensata. Rancière argumenta que essa escolha reorienta as figuras românticas da equivalência do logos e do pathos de volta à lógica representativa tradicional.

Ele identifica um método de leitura das obras que se alinha a um paradigma de investigação de causas, onde o detalhe nas obras serve como uma janela para desvendar uma história subjacente. Rancière diferencia entre duas abordagens ao detalhe: uma que vê o detalhe como um rastro falante que ajuda a reconstituir uma história, e outra que vê o detalhe “insignificante” como a marca direta de uma verdade inarticulável que desafia uma lógica de história bem-composta.

Rancière explora como o detalhe pode funcionar como um objeto parcial, um fragmento inacomodável que desfaz a ordenação da representação para revelar uma verdade inconsciente que transcende uma história individual. Ele sugere que Freud busca o fantasma matricial da criação do artista, em vez da ordem figural inconsciente da arte, e utiliza o exemplo do Moisés de Michelangelo, interpretado por Freud: “…é algo como o Laocoonte de Winckelmann, a expressão de uma serenidade clássica vitoriosa sobre o afeto.” (p. 61). 

Imagem gerada pela IA DALL-E a partir da citação abaixo

Uma medicina contra outra

No Capítulo 7, Rancière explora a resistência de Freud a uma abordagem romântica ou estética do inconsciente, que é vista como uma fusão entre arte e vida. Ele destaca a recusa de Freud em adotar a ideia de uma moral estética que se desvia da lógica causal e de culpabilidade, em favor de uma busca pela verdade através da intriga causal.

Rancière discute a renúncia schopenhaueriana ao querer-viver como uma forma de cura, algo que Freud rejeita, insistindo em uma boa intriga causal para explorar o inconsciente. A descoberta da pulsão de morte por Freud é vista como um episódio em uma longa confrontação com o tema obsessivo do inconsciente schopenhaueriano e as grandes ficções literárias que exploram o retorno a esse inconsciente.

Rancière também aborda a crítica à abordagem biografista de Freud em relação à arte, apontando para a busca de outros estudiosos nas particularidades da arte que refletem a eficácia do inconsciente. Ele menciona como alguns estetas modernos, que são críticos de Freud, ainda recorrem à Freud para fundamentar suas teorias sobre a potência da arte e seu efeito de desamparo.

A interação entre os dois inconscientes, o estético e o freudiano, é explorada, com Rancière explicando como a psicanálise de Freud pressupõe uma revolução estética que revoga a ordem causal da representação clássica. No entanto, ele nota que Freud faz uma escolha clara, preferindo a interpretação e a esperança da cura em vez da entropia niilista associada ao poder da palavra surda na arte.

“A relação entre os dois inconscientes apresenta, portanto, uma singular permutabilidade. A psicanálise freudiana pressupõe essa revolução estética que revoga a ordem causal da representação clássica e identifica a potência da arte à identidade imediata dos contraditórios, do logos e do pathos. Ela pressupõe uma literatura que repousa sobre a dupla potência da palavra muda. Mas, nessa dualidade, Freud opera sua escolha. À entropia niilista inerente ao poder da palavra surda, ele opõe a outra forma da palavra muda, o hieróglifo entregue ao trabalho da interpretação e à esperança da cura.” (p. 76).

Rancière conclui com a discussão de uma nova forma de freudismo que desafia o biografismo freudiano e se alinha mais de perto com o novo regime da arte. Este freudismo alternativo valoriza a potência surda de uma palavra do Outro, irredutível a toda hermenêutica, e reivindica a entropia niilista, arriscando transformar a volúpia do retorno ao abismo original em uma relação sagrada com o Outro e com a Lei.

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