Você já se sentou para escrever alguma vez, mas chegou à conclusão de que não existiam palavras para expressar o que você sentia? Pois hoje quero te contar que existe uma forma de escrita perfeita para esses momentos: a escrita assêmica.
O que é escrita assêmica?
A escrita assêmica é uma escrita sem palavras e liberta de sentido semântico (relação de significante e significado), na qual o escritor utiliza as formas das letras para expressar o que deseja. É uma sombra, uma impressão, uma abstração da escrita convencional.
Em outras palavras, ao invés de se preocupar em escrever um texto legível pelos falantes de um determinado idioma, o escritor opta por produzir contornos que remetam a letras, ideogramas, hieróglifos ou quaisquer outras formas de escrita já inventadas pela humanidade.
O principal ponto da escrita assêmica é que o resultado se pareça com escrita — seja pelos símbolos utilizados ou pela disposição dos símbolos — a ponto de ser facilmente confundido com a escrita convencional em um primeiro momento. No entanto, com um olhar mais atento, o leitor perceberá que precisará fazer uma leitura diferente do que está escrito.
Significado da palavra assêmica
A palavra “assêmica” significa “sem conteúdo semântico específico”. Muitos artistas, ao longo da história, praticaram esse tipo de escrita — um dos exemplos mais interessantes é o do calígrafo chinês do século VIII Zhang Xu —, mas a prática só ganhou esse nome na década de 1990, quando o poeta norte-americano Jim Leftwitch e o guitarrista australiano Tim Gaze começaram a buscar maneiras de separar o ato de escrever das palavras conhecidas no mundo.
Em suas pesquisas, encontraram a palavra “assêmico”, utilizada por Roland Barthes — que mais de uma vez declarou que “escrever não é digitar”— no livro O rumor da língua e por Jacques Derridá, no livro Dissemination.
Temerosos pelo fim da escrita à mão — algo que se prenunciava desde a popularização das máquinas de escrever, mas que se tornou mais evidente após a chegada dos computadores — Leftwitch e Gaze entenderam que a inexistência de sentido semântico era o que poderia salvar o ato de escrever.
A escrita assêmica como expressão dos sentimentos
Quando lemos um texto assim, digitado, não temos acesso ao estado de espírito de quem o escreveu. Ao ler as palavras que digitei para compor esse artigo, você não sabe se estou feliz, triste, cansada, com fome, com frio, etc.
No entanto, se eu publicasse o artigo escrito à mão com a minha própria letra, você teria acesso aos vários estados de espírito pelos quais passei ao escrevê-lo — isso porque a letra de cada um de nós muda no decorrer do processo de escrita de um texto.
Segundo Barthes, o ato de escrever só acontece quando nossas mãos encontram a superfície do papel, através do qual nossas emoções podem atravessar nosso corpo inteiro e as alterações emocionais podem ser observadas.
E é exatamente esse o alicerce do conceito de escrita assêmica: a expressão da escrita não está no significado das palavras, mas sim na forma como ela se apresenta.
(De fato, basta escrever à mão em momentos diferentes do dia e comparar os resultados que você perceberá que em cada ocasião a sua letra estará diferente. Além de ser uma alternativa analógica para desenvolver suas ideias, escrever à mão contribui para a sua criatividade.)
Gaze conta que começou a desenvolver a forma assêmica para expressar as suas complexidades. Após uma viagem à Indonésia, muito confuso para expressar em palavras o que a experiência havia lhe provocado, ele começou a fazer rabiscos que, meses depois, se tornaram seu primeiro livro de escrita assêmica.
Para ele, a escrita não contém apenas informações semânticas, mas também informações estéticas e informações emocionais — e é através dessas informações que o escritor pode expressar seus sentimentos sem, necessariamente, fazer uso da linguagem.
Estética de escrita oriental versus ocidental
Um ponto interessante levantado por Gaze no artigo escrita assêmica e arte: um outro caminho são as diferenças entre a estética da escrita no oriente e no ocidente. Como ele muito bem lembra, na cultura chinesa “a poesia, a pintura e a caligrafia são consideradas artes muito próximas. Para ele a escrita assêmica é “uma analogia ocidental disso”.
Em contraposição com a cultura ocidental (de massa), na qual tudo é vendável, interpretado e produzido em massa, realizar o ato da escrita desprovido de sentido semântico, afastando-se da ideia da reprodutibilidade, é como dar voz ao instinto e à intuição que muitas vezes sufocamos com nossa mania de teorizar tudo.
A maioria das culturas orientais valorizam, em termos estéticos, o desigual, o que se diferencia do outro — ao contrário do ocidente, em que a estética em voga é a da perfeição, a das formas harmoniosas, dos acontecimentos regulares e esperados. Enquanto a cultura oriental se apropria da desordem, a cultura ocidental anseia por organizar tudo.
Gaze afirma ainda que “escrevendo uma palavra, ativa-se essa palavra na mente do leitor. Essa é uma forma de controle mental”. A princípio pode soar um pouco exagerado, mas numa reflexão mais refinada não deixa de ser verdade. Cada palavra escrita é uma forma do escritor direcionar o pensamento do leitor.
Como praticar a escrita assêmica
Como mencionei antes, a chave da escrita assêmica é se parecer com escrita, mas não ser. Portanto, basta que você utilize caracteres, letras, formas, ideogramas, símbolos, alfabetos e hieróglifos que se pareçam com escrita e que remetam a “manchas” parecidas com as formadas por parágrafos, linhas, versos, poemas, etc.
Vale lembrar que essa forma de escrita ainda está em formação e traz em seu cerne uma mensagem de liberdade. Sendo assim, não existem regras específicas, podendo ser praticada também com colagens, em formatos digitais, animações, na modificação de livros e documentos, na criação de caracteres próprios, etc. O interessante é que cada artista explore e encontre a sua forma particular de escrita assêmica para expressar os seus sentimentos.
É preciso ter em mente também que, como toda expressão artística, desprender o ato da escrita do seu sentido semântico é um processo. Se você não tem muita experiência em se expressar de forma abstrata (como é o meu caso), prepare-se para uma experiência de auto exploração e de certa quebra da lógica na transmissão das suas ideias.
Para finalizar, deixo abaixo minhas primeiras experiências com escrita assêmica. Enquanto estava realizando o exercício, percebi como é difícil levar minha mente para um estado mais abstrato quando estou no ato da escrita. Apesar de muito da minha escrita resultar na expressão dos meus sentimentos, me vi perdida ao retirar as palavras de cena — e foi isso que tentei expressar nesse exercício.