5 lições de composição musical de Guillaume de Machaut

5 lições de composição musical de Guillaume de Machaut

O som é a matéria-prima da música e, por conseguinte, de toda composição musical. Roy Bennett, autor de uma dúzia de livros sobre música (inclusive um sobre composição musical), resume da seguinte forma:

“Quando um compositor está escrevendo uma peça musical, deve planejar seu trabalho com um detalhamento tão cuidadoso quanto um arquiteto ao projetar uma construção. Em cada caso, o produto final deve possuir continuidade, equilíbrio e forma. Porém, enquanto a arquitetura preocupa-se com o equilíbrio no espaço, a música está voltada para o equilíbrio no tempo.”

Do livro Forma e estrutura na música, de Roy Bennett

Não há nada que sintetize melhor o que foi dito acima do que a obra de Guillaume de Machaut. Mas antes de falarmos sobre Machaut, é necessário fazer uma breve contextualização histórica.

Breve contextualização histórica 

O período 

O século XIV foi marcado por grande atividade literária, com nomes como Petrarca, Dante, Boccaccio e Chaucer, tendo na pintura Florentine Giotto como seu principal representante. 

Em contrapartida, foi um século de conturbações na Igreja, resultando no duplo papado (Avignon e Roma) e refletindo na música de forma que neste século houvesse uma predominância da música secular

Nas palavras de Brigitte Massin:

“…dois séculos antes do Concílio de Trento, a Igreja já se dava conta de que a música estava se tornando uma arte e já não era a ciência de dar suportes melódicos à Palavra da Verdade. Uma arte que iria proporcionar, no próprio seio da igreja, em plena celebração dos ofícios, prazeres intelectuais aliados aos prazeres dos sentidos, dispersando com isso a atenção dos fiéis e desviando-os dos mistérios divinos.”

Do livro História da música ocidental, de Bigitte Massin

Outros acontecimentos importantes deste século foram a grande praga ou peste bubônica e a Guerra dos Cem Anos (1337–1453) entre a Inglaterra e a França.

Ars Nova

No início do século XIV, a Polifonia (Contraponto) passou a se desenvolver com uma maior flexibilidade rítmica e harmônica com terminações fraseológicas ainda com acordes formados apenas de 4ª’s, 5ª’s e 8ª’s.

Trecho de um moteto do séc. XIII, compositor desconhecido

Durante este período, conhecido como Ars Nova, a escrita musical se desenvolve, ampliando as possibilidades musicais relacionadas ao ritmo e suas relações com a construção melódica, o que resultará em uma Polifonia complexa.

Em outras palavras, a medida da duração das notas se tornou progressivamente mais definida. Desta forma, as indicações de métricas no início da pauta possibilitaram uma infinidade de combinações entre os vários valores das notas (durações) e os padrões métricos, conhecidos atualmente como fórmula de compasso. 

Em cima: Equivalências de notas e valores; em baixo: As quatro prolationes. Na indicação de metro os círculos e semicírculos assinalam o tempo, e o número de pontos se refere a cada prolação.

Lições de composição musical de Guillaume de Machaut

1. Um grande poeta compositor

Guillaume de Machaut (1300 – 1377) é considerado o mais importante compositor e poeta do século XIV. Daniel Leech-Wilkinson o chamou de “o último grande poeta que também foi compositor”. Entretanto outros pesquisadores como Brigitte Massin, por exemplo, dizem que: 

“Muito se tem insistido em fazer de Machaut o último dos troveiros, sob o pretexto de que ele retomou algumas das formas líricas tão características destes, e também porque pôs em música uma parte de sua própria obra poética. É não reconhecer nele o homem dos novos tempos, é ignorar a força e o alcance de sua obra, ignorar também que Machaut teve perfeita consciência de ser o primeiro artista, no moderno sentido da palavra.”

Fato é que Machaut é um dos primeiros compositores sobre o qual temos uma considerável informação biográfica

2. Formas musicais 

Machaut compôs em uma ampla gama de estilos e formas e, embora não tenha inventado nenhuma nova forma, levou à perfeição os gêneros já existentes. Sua obra é crucial para o desenvolvimento do Moteto e das formas da música secular, como olai e as formas fixas rondeau, virelai e abalada.

O Moteto teve sua origem na escola de Notre Dame e se consagrou como gênero musical a partir do século XIII como música polifônica. No início eram compostas somente melodias em contraponto ao cantochão, em seguida foram incluídos textos para cada voz, criando uma estrutura politextual. 

3. As técnicas composicionais 

A mais importante técnica composicional deste período é a Isorritmia, que nada mais é que a repetição regular de uma figura rítmica como elemento unificador na construção da forma. Esta técnica já era utilizada desde o século XIII, sobre o ritmo (Talea) e também nos desenhos melódicos (Color). 

Não necessariamente a Talea precisava repetir um fraseado de forma exata, algumas vezes ocorriam variações nas combinações de alturas e durações das figuras rítmicas. 

Exemplo de uma Talea e uma Color e sua aplicação, por Cássio Menin

Esta técnica foi utilizada principalmente como Cantus Firmus, ou seja, muitas vezes encontrava-se nas vozes graves. Entretanto, às vezes era estendida para todas as vozes da textura polifônica.

Machaut se debruçou sobre os rigorosos cálculos da isorritmia. De certa forma, era uma diversão para o compositor multiplicar as dificuldades composicionais como, por exemplo, escrevendo uma parte contratenor semelhante à parte tenor, só que de trás para diante como em Ma fin est mon commencement, et mon commencement ma fin (meu fim é meu começo e meu começo é meu fim, em tradução livre). 

4. A missa de Notre Dame 

Considerada a principal obra de Machaut, a Missa de Notre Dame foi a primeira missa composta para quatro vozes (tenor, contratenor, motetus e triplum) em estilo polifônico. 

Também foi a primeira missa (e obra de grande escala) composta sobre todo Ordinário por um único compositor, inaugurando desta forma uma tradição de se compor obras com uma identidade de estilo e temática.

O manuscrito do Kyrie da Missa de Notre Dame.

Nesta obra, Machaut utiliza a polifonia para as partes do Ordinário, enquanto nas partes do Próprio é usado o estilo monódico gregoriano. Na parte polifônica da obra, Machaut utiliza duas técnicas: 

a. A técnica do cantus firmus, na qual o tenor canta notas longas enquanto as outras vozes trabalham os melismas nas novas estruturas rítmicas acima e abaixo da tessitura do tenor. 

b. Estilo silábico, onde ocorre uma nota para cada sílaba, todas as vozes cantam juntas o texto.

5. O legado 

As obras de Machaut são ótimos exemplos do cuidado no processo composicional e do próprio significado da palavra composição. 

Artesão da antiga e da nova forja, tal qual se autodenominava, Machaut influencia diretamente grandes compositores como Stravinsky (que inclusive compôs uma missa utilizando técnicas similares), Messiaen e Webern, por exemplo.

Ao ser um artista múltiplo e aprimorar formas e técnicas musicais de sua época, Guillaume de Machaut deixou um legado que continua influenciando toda a música ocidental produzida hoje, mais de seis séculos após a sua morte. Suas lições estão muito além de dicas composicionais: são verdadeiros alicerces para todos que se aventuram em criar suas próprias composições.

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