A música e a poesia sempre caminharam lado a lado. Desde a antiguidade até os dias atuais, podemos encontrar inúmeros exemplos de uma utilizando recursos da outra.
E como nosso assunto é composição musical, veremos alguns dos recursos poéticos que podem ser muito úteis na hora de criar aquela letra de música arrebatadora.
Mas, antes de começar, não posso deixar de citar o recurso mais comum, que você já deve dominar (ou pelo menos conhece): é a Rima, ou seja, aquela recorrência de sons correspondentes. Não irei abordar esse assunto aqui — isso porque as rimas valem um artigo à parte.
Então sobre o que é esse artigo, se não fala de rima? Bom, na verdade a rima é apenas um dos recursos poéticos utilizados por poetas e compositores. Existem outros tão importantes quanto a rima.
Aliteração
A Aliteração, por exemplo, trata da repetição de um mesmo som, ou seja, é a repetição de fonemas idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou no verso, visando obter efeito estilístico.
Um exemplo comum do uso da aliteração são os populares trava-línguas. Mas lembre-se, a repetição de alguns fonemas em uma frase pode causar certa dificuldade de ser cantada — ou melhor, a frase pode ser difícil de ser pronunciada.
O célebre compositor Paulo Vanzolini, utilizou na sua música O Rato Roeu a Roupa do Rei de Roma, uma aliteração de forma exemplar, veja:
O rato roeu a ropa do rei de Roma O sapo saltou do saco Se sacudiu e sumiu da soma Tatu, tamanduá, tejubina Transaram umas trovas Tolices totais O vento da vida ventou E varreu você pro nunca mais O gato do mato, passando prato Ai que barato Cachorro pedindo socorro Na rampa do morro E gritando que é zorro Um pinto muito distinto Tomando absinto Em pleno recinto, e o rastro do vento Puxando pra dentro, do meio de centro Do nunca mais
Metáfora
A Metáfora é o segundo recurso que trago neste artigo. Muito comum, essa figura de linguagem compara uma coisa à outra, ou seja, é a designação de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de semelhança.
A metáfora foi muito utilizada pelos compositores brasileiros no período da ditadura militar. Fazendo uso do recurso poético, os compositores não tinham suas músicas barradas pela censura.
São muitos os exemplos, mas talvez o mais emblemático seja Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil.
Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue” (repete 2x) Como beber dessa bebida amarga? Tragar a dor, engolir a labuta? Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa? Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada prá a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade? Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça
Imaginação
O terceiro recurso é a Imaginação. Quem nunca se pegou pensando naquelas letras e frases incríveis que formam imagens perfeitas na nossa mente enquanto lembramos ou ouvimos determinada canção?
As letras ou frases que remetem a descrição de algo em uma composição musical criam o que chamamos de impressões duradouras, justamente por estimularem a nossa imaginação.
Um ótimo exemplo é a canção Chão de Estrelas de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. O próprio título já nos faz imaginar o que seria esse chão de estrelas que os compositores querem expressar.
Minha vida era um palco iluminado Eu vivia vestido de dourado Palhaço das perdidas ilusões Cheio dos guizos falsos da alegria Andei cantando a minha fantasia Entre as palmas febris dos corações Meu barracão no morro do Salgueiro Tinha o cantar alegre de um viveiro Foste a sonoridade que acabou E hoje, quando do Sol, a claridade Forra o meu barracão, sinto saudade Da mulher pomba-rola que voou Nossas roupas comuns dependuradas Na corda, qual bandeiras agitadas Pareciam um estranho festival Festa dos nossos trapos coloridos A mostrar que nos morros mal vestidos É sempre feriado nacional A porta do barraco era sem trinco Mas a Lua, furando o nosso zinco Salpicava de estrelas nosso chão Tu pisavas nos astros, distraída Sem saber que a ventura desta vida É a cabrocha, o luar e o violão
Tenho certeza de que para cada um dos recursos você encontrará centenas de exemplos de composições musicais. Sinta-se à vontade para compartilhar conosco — por e-mail, nos comentários ou em qualquer outro canal da Têmpora Criativa — os que você lembrar.