Aaron Copland (1900-1990) é um dos compositores mais relevantes da música de concerto norte-americana do século XX. Além do legado de suas composições, sua contribuição teórica e educacional ficou registrada no livro What to Listen for in Music, onde materializa seu pensamento através da escrita, buscando educar o público sobre a audição ativa e a apreciação musical.
Publicado pela primeira vez em 1939, o livro de Copland divide a audição musical em três planos distintos: sensorial, expressivo e puramente musical. Trata-se de uma abordagem que fornece aos leitores uma estrutura clara e acessível para compreender e apreciar a complexidade da música, tornando-se até hoje uma das referências fundamentais sobre o assunto tanto para músicos quanto para apreciadores da música. A tradução para o português, realizada por Luiz Paulo Horta, foi publicada somente em 1974 pela Editora Artenova e recebeu o título Como ouvir e entender música.
Nosso objetivo é revisitar os três planos de audição musical propostos por Aaron Copland, uma vez que a música, como qualquer forma de arte, está sujeita a mudanças interpretativas que refletem novos entendimentos culturais, sociais e filosóficos. Neste sentido, revisitar os planos de Copland com uma lente atualizada permite uma maior integração das abordagens fenomenológicas, semióticas e críticas da estética contemporânea, proporcionando uma compreensão mais holística e aplicável da música no contexto atual. Consequentemente, ao revisitarmos os planos, buscamos preservar a relevância do trabalho de Copland, mas também proporcionar novas ferramentas analíticas que possam ser utilizadas em diversas práticas acadêmicas e educacionais.
O Decano dos Compositores Norte-Americanos
Aaron Copland, cuja contribuição para a solidificação da música norte-americana de concerto é imensurável, nasceu no Brooklyn, Nova York, e destacou-se como compositor prolífico, crítico, escritor, professor, pianista e maestro.
Apelidado de “Decano dos Compositores Americanos” (Rockwell, 1990), Copland desenvolveu um estilo característico marcado por harmonias abertas e progressões lentas, evocando a vastidão das paisagens americanas e o espírito pioneiro que moldou a nação norte-americana. Este estilo, frequentemente denominado “populista” ou “vernacular”, é exemplar em obras representativas como os balés Billy the Kid (1938), Rodeo (1942) e Appalachian Spring (1944), além de Fanfare for the Common Ma (1942) e sua “Terceira Sinfonia” (1944-1946). A produção musical de Copland abrange uma vasta gama de gêneros, incluindo música de câmara, obras vocais, óperas e trilhas sonoras para filmes.
Copland não se via como escritor profissional e para ele a escrita de livros sobre música era na verdade “um subproduto do meu ofício” como “uma espécie de vendedor de música contemporânea” (Copland & Perlis 1984, p. 175). Mesmo assim, produziu uma quantidade significativa de textos sobre música, incluindo críticas, análises e reflexões sobre suas próprias composições. Suas notas de palestras foram compiladas em três livros importantes: What to Listen for in Music (1939), Our New Music (1941) e Music and Imagination (1952). Nos anos 1980, em colaboração com Vivian Perlis, ele publicou uma autobiografia em dois volumes: Copland: 1900 Through 1942 (1984) e Copland Since 1943 (1989).
Notável é sua preocupação com a educação musical. Segundo Smith (1953) e Pollack (1999), ao longo de sua carreira, Copland dedicou-se a ajudar jovens compositores, oferecendo conselhos e críticas construtivas. Mesmo fora do ambiente institucional, ele manteve uma presença significativa no cenário musical contemporâneo, lecionando periodicamente no Berkshire Music Center em Tanglewood, na New School, em Harvard e na Universidade Estadual de Nova York em Buffalo. Seu enfoque no desenvolvimento do conteúdo expressivo e no estilo pessoal dos compositores emergentes, ao invés de aspectos puramente técnicos, deixou uma marca duradoura. Além disso, Copland destacou-se por sua disposição em criticar obras em progresso de seus colegas. Como o compositor William Schuman observou, Copland não tentava moldar os compositores à sua imagem, mas compreendia suas intenções e ajudava a realizar o potencial de suas obras, oferecendo críticas que incentivaram a autorreflexão e o desenvolvimento artístico (Pollack, 1999).
Como Ouvir e Entender Música
Com essa exposição sucinta sobre a vida e obra de Copland, buscamos demonstrar que Copland estava, de certa forma, atento à formação de novos músicos e ouvintes. Tratando agora especificamente do livro que pretendemos analisar, passaremos a discuti-lo de forma mais direta.
Após a devida releitura da obra, nota-se que o livro “Como ouvir e entender música” (1974) foi escrito no contexto de sua profunda preocupação com a educação musical e o desejo de tornar a música acessível e apreciável por um público mais amplo.
Publicado pela primeira vez em 1939, durante um período em que a música de concerto estava se tornando mais difundida nos Estados Unidos, o livro de Copland reflete a tentativa de educar o público geral sobre como ouvir e entender música de maneira mais profunda e informada.
O contexto cultural e social da época é importante para entender a motivação de Copland. Durante as décadas de 1930 e 1940, os Estados Unidos passaram por grandes mudanças, incluindo a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. A música, como outras formas de arte, era vista como uma maneira de elevar o espírito nacional e proporcionar consolo e inspiração. Copland, ciente da necessidade de engajar o público com a música de concerto, sentiu a responsabilidade de educar e esclarecer os ouvintes sobre os elementos e a estrutura da música.
No livro, Copland se propõe a desmistificar a experiência de ouvir música, guiando os leitores a desenvolver uma apreciação mais refinada e crítica. O compositor aborda a música de forma clara e acessível, sem utilizar jargão técnico excessivo, o que torna o livro de fácil leitura e compreensão tanto para iniciantes quanto para ouvintes mais experientes.
Note-se que, embora o livro traga em sua abordagem alguns exemplos de música popular, de modo geral, as questões são levantadas tratando de um tipo específico de música, a saber, a música de concerto. Dito isso, apontamos aqui uma primeira ressalva que servirá, de certo modo, como base para as discussões que se seguem. Por tratar-se de ouvir e entender música, não deveria Copland estar preocupado com uma formação musical mais ampla e não apenas com um tipo de música? É neste sentido que surge a questão: é possível fazer uma transposição de suas formas de escuta – ou seja, seus planos – para todo e qualquer tipo de música, ou devemos considerar apenas a música de concerto? Se não for possível, não estaríamos assim excluindo de forma precipitada todas as outras manifestações musicais?
Se, por um lado, essa abordagem é compreensível, visto que, até pouco tempo (para não dizer até hoje), as práticas de ensino e metodologias de ensino de música eram (e são) calcadas na tradição da música de concerto, consequentemente, na partitura. Este foco histórico nas partituras e na música de concerto se deve, em grande parte, a uma espécie de prestígio cultural iniciado e perpetuado desde o século XIX e à estrutura educacional (aqui, de forma generalizada) que valoriza esses elementos como representativos do “alto padrão” musical.
Por outro lado, no entanto, é importante questionar se essa limitação é necessária ou desejável no contexto contemporâneo. A música popular, folclórica e outras formas de expressão musical também possuem estruturas complexas e oferecem experiências estéticas que podem e devem ser analisadas e apreciadas. Ao aplicarmos os planos de escuta de Copland — sensorial, expressivo e musical — a esses outros gêneros, podemos descobrir camadas de significado e, por conseguinte, apreciar melhor a diversidade das experiências musicais. Ademais, a transposição das formas de escuta propostas por Copland para outros gêneros musicais é não apenas possível, mas desejável.
Neste sentido, este texto não é sobre educação musical, embora seja possível traçar um paralelo facilmente. O foco aqui é a estética da música. Dentro desse campo, é crucial reconhecer que a estética musical não está restrita a um único gênero ou forma. A diversidade das manifestações musicais e as distintas culturas de escuta enriquecem o entendimento estético da música. Ao nos propormos a revisitar os métodos de análise e apreciação desenvolvidos por Copland para outros gêneros, reconhecemos a legitimidade e a profundidade estética de uma gama mais ampla de tradições musicais. Dito isso, vamos às definições propostas pelo autor:
O plano sensorial, segundo Copland (1974), é a experiência mais imediata e direta da audição musical. Este plano é caracterizado pelo prazer puro e simples dos sons musicais, sem qualquer necessidade de análise ou compreensão intelectual. A audição sensorial é uma resposta instintiva e emocional aos elementos musicais como melodia, harmonia, ritmo e timbre. Segundo Copland, todos os ouvintes, sejam eles leigos ou experientes, vivenciam este nível de audição em algum grau, pois é a maneira mais natural de interagir com a música. Nas palavras do autor: “A maneira mais simples de ouvir música é entregar-se totalmente ao próprio prazer do som. Esse é o plano sensível. É o plano em que nós ouvimos música sem pensar, sem tomar muita consciência disso” (p. 22).
A exemplificação é dada pelo autor da seguinte maneira:
Ligamos o rádio enquanto fazemos outra coisa e tomamos um banho de som. A mera percepção do som já é capaz de produzir um estado mental que não é menos atraente por ser desprovido de ideias. Você pode estar sentado na sala lendo este livro. Imagine uma nota percutida no piano. Essa nota, por si só, é capaz de mudar a atmosfera da sala — o que prova que o elemento sonoro da música é um agente estranho e poderoso, que seria tolice subestimar (Copland, 1974, p. 22).
O texto prossegue com a observação de que muitos ouvintes, mesmo aqueles que se consideram de “qualidade”, frequentemente abusam da escuta sensorial em concertos, usando a música como uma forma de “consolação ou subterfúgio”, sem realmente prestar atenção à música em si. Ele reconhece que o apelo sonoro da música é uma força poderosa, mas adverte que não deve dominar desproporcionalmente o interesse do ouvinte.
Embora a escuta sensorial seja importante, é apenas uma parte da experiência musical, segundo o autor, “não há necessidade de maiores digressões a propósito desse plano” (p.23). Entretanto, sugere que é possível desenvolver uma maior sensibilidade aos diferentes tipos de matéria sonora utilizados pelos compositores, que variam de acordo com o estilo de cada um, alertando contra a ideia de que o “valor da música” está diretamente relacionado ao seu “apelo sensorial”, exemplificando que, se fosse assim, Ravel seria considerado maior do que Beethoven. A apreciação musical deve levar em conta a maneira única como cada compositor utiliza o som. (p. 22-23).
O plano expressivo, segundo o autor, vai além do prazer sensorial e busca entender as emoções e sentimentos que a música transmite. Neste nível, os ouvintes começam a interpretar a música como uma forma de comunicação emocional. Eles tentam identificar os sentimentos e estados de espírito que a música expressa e se conectar emocionalmente com a obra.
Este plano é discutido denotando a existência de uma controvérsia associada a ele. Mencionando que compositores, como Stravinsky, frequentemente evitam discutir o aspecto expressivo da música, com Stravinsky chegando a afirmar que sua música é um “objeto” sem significado além de sua própria existência musical (ver os livros Poética Musical de 1996 e Conversas com Stravinsky de 1984). Copland nos sugere que essa visão pode ser uma reação à dificuldade de atribuir significados precisos e universalmente aceitos às peças musicais.
No entanto, Copland defende que toda música possui um poder expressivo, “algumas mais e outras menos, mas todas têm um certo significado escondido por trás das notas, e esse significado constitui, afinal, o que uma determinada peça está dizendo, ou o que ela pretende dizer” (p.23). O problema, segundo o autor, pode ser colocado de outra forma: “A música tem um significado?” O autor prossegue: “Ao que a minha resposta seria ‘Sim’. E depois: ‘Você pode dizer em um certo número de palavras que significado é esse?’ E aqui a minha resposta seria ‘Não’. Aí é que está a dificuldade.” (p.24). Nesta linha de raciocínio, ele realiza uma crítica à “ideia popular” de que a música deve ter um sentido concreto e específico, argumentando que a verdadeira expressão musical pode envolver uma variedade de estados de espírito e nuances que não se prestam a descrições verbais precisas.
Finalizando a discussão sobre este plano, Copland ressalta que a música que oferece múltiplas interpretações tende a ter um poder expressivo mais duradouro, ilustrando essa ideia com exemplos de temas musicais que, apesar de sua beleza, são difíceis de definir verbalmente. “Você também perceberá que quanto mais belo lhe parece um tema, mais difícil se torna achar para ele uma explicação verbal que satisfaça a você mesmo” (p.25).
Já no plano puramente musical, conforme o autor, a escuta musical propriamente dita é o nível mais avançado de apreciação musical. Neste nível, os ouvintes analisam a estrutura e os elementos técnicos da música, como a forma, a harmonia, a melodia, o ritmo e a orquestração. Eles tentam entender como esses elementos são combinados para criar a obra musical como um todo.
A escuta musical requer algum conhecimento teórico e uma capacidade de reconhecer e apreciar a construção técnica da música. Copland observa que “a maioria dos ouvintes não têm suficiente consciência desse terceiro plano” (p.26), ainda segundo o autor, essa seria “uma das principais finalidades deste livro é atender a essa deficiência” (p.26).
Conforme é realçado pelo autor, os músicos profissionais muitas vezes dão atenção excessiva às notas, perdendo a “dimensão profunda” da música. Neste sentido, destaca a importância de aumentar a percepção dos ouvintes quanto ao material musical, incluindo melodia, ritmo, harmonia e “colorido tonal”, além de compreender os princípios da forma musical. Já em busca de justificar sua proposta, o autor nos diz:
“Deixem-me repetir que eu só dividi artificialmente esses planos hipotéticos da audição para obter uma clareza maior. Na verdade, nunca ouvimos um ou outro desses planos. O que nós fazemos é combiná-los, ouvindo-os ao mesmo tempo. E isso não exige qualquer esforço mental, porque é feito instintivamente” (p. 26-27).
Aqui, o autor faz uma analogia com o teatro para ilustrar como, assim como no teatro onde percebemos simultaneamente atores, cenários e sons, na música também combinamos os três planos — sensorial, expressivo e musical — de forma instintiva e simultânea. “De acordo com o grau de consciência que você tenha dos processos artísticos utilizados em um e outro campo, você será um ouvinte ou espectador inteligente — ou não” (p.27).
Por fim, Copland nos sugere que tanto o “ouvinte ideal” quanto o compositor devem estar “dentro e fora da música”, julgando-a e desfrutando dela, e recomenda uma abordagem “mais ativa” (palavra caríssima à Educação Musical) e consciente da escuta musical. “Uma atitude subjetivo-objetiva está implícita na criação e na apreciação da música” (p.27).
Os Conceitos de Copland na Atualidade
A utilização dos conceitos de Copland na atualidade deve ser feita de forma a contemplar diferentes tipos e formas musicais.
Primeiramente, como o próprio autor recomenda, é essencial expandir o contexto histórico e social da análise musical, reconhecendo a diversidade musical, que, esteticamente falando, é enriquecida ao trazermos novas texturas, timbres e formas de expressão. Outro ponto relevante é considerar que a tecnologia mudou drasticamente a forma como a música é produzida, distribuída e consumida, afetando profundamente a experiência estética. Incluir discussões sobre o impacto da digitalização, do streaming e das redes sociais pode tornar os conceitos mais relevantes para o público contemporâneo e ampliar a compreensão estética da música.
No plano sensorial, por exemplo, podemos incentivar os ouvintes a apreciar a variedade de timbres e sons disponíveis em diferentes gêneros musicais, desde os sintetizadores da música eletrônica até os ritmos complexos da música brasileira, reconhecendo como cada estilo contribui para uma experiência estética única. Já no plano expressivo, é importante explorar como diferentes gêneros musicais expressam emoções e narrativas. Por exemplo, o rap aborda frequentemente questões sociais e políticas, enquanto a música clássica pode evocar uma gama de estados emocionais. Trata-se de encorajar os ouvintes a identificar e se conectar com essas expressões diversas para aprofundar a apreciação estética. Por fim, no plano musical, é importante introduzir os elementos técnicos e estruturais específicos de cada gênero, pois a análise desses elementos revela as complexidades estéticas inerentes a cada forma musical.
A inclusão de novas metodologias de ensino, embora não seja o foco principal deste texto, pode ser utilizada como uma forma de promover uma apreciação estética mais ampla. Desenvolver metodologias que considerem a diversidade cultural e musical, promovendo um currículo que inclua não apenas a música de concerto, mas também músicas populares, folclóricas e contemporâneas, amplia o entendimento estético. Utilizar vídeos, gravações e ferramentas digitais para ilustrar pontos e engajar os ouvintes de forma interativa e dinâmica também contribui para uma experiência estética mais rica.
Incluir, substituir ou complementar os exemplos clássicos com músicas contemporâneas e relevantes para o público atual, como artistas populares, trilhas sonoras de filmes ou músicas que tenham impacto cultural significativo, torna os conceitos estéticos mais acessíveis e aplicáveis. Do mesmo modo, discutir questões contemporâneas na música é essencial, uma vez que a música pode representar e influenciar questões de identidade, raça, gênero e política, e diferentes gêneros musicais abordam e refletem essas questões.
Por fim, a adaptação dos conceitos de Copland para a atualidade não só é possível como também é essencial para tornar sua abordagem mais inclusiva e relevante para o contexto e o público contemporâneo.
Referências
COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender música. São Paulo: Editora Artenova, 1974.
________; PERLIS, Vivian. Copland 1900 Through 1942. New York: St. Martins/Marek, 1984.
POLLACK, Howard. Aaron Copland. Nova Iorque: Henry Holt, 1999.
ROCKWELL, John. Copland, Dean of American Music, Dies at 90. In:____ New York Times, December 3, 1990, Section A, Page 1. Disponível em: <https://www.nytimes.com/1990/12/03/obituaries/copland-dean-of-american-music-dies-at-90.html>. Acesso em: 15 jun. 2024.
SMITH, Júlia. Aaron Copland. Nova York: EP Dutton, 1953.